O diabo não veio para matar, roubar e destruir
O ladrão não vem senão a roubar, a matar, e a destruir; eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância — João 10:10
Quantas vezes você já ouviu, ou até mesmo falou, que o diabo veio para matar, roubar e destruir? Não é raro encontrar alguém que interprete o texto de João 10:10 desta forma.
Mas será que há espaço neste texto para realizarmos uma leitura “espiritualizada” como esta? Seria honesto afirmarmos que o ladrão de João 10:10 se trata do inimigo de nossas almas? Creio que não e, neste estudo, veremos porquê.
Tudo começa com o cego
A interpretação errônea deste texto parte do pressuposto de que Cristo está apresentando aos discípulos um quadro comparativo entre Seu ministério e propósito salvífico com a ação de Satanás e seu ímpeto em destruir a criação de Deus, contudo, não encontramos nesta parábola do Mestre, e no conjunto de eventos em que ela está inserida, nenhuma evidência ou referência da ação e presença do diabo.
Para evitarmos uma leitura deturpada de qualquer texto bíblico precisamos, primeiramente, compreender o contexto no qual a passagem se encontra, sua relação com os demais trechos, em que ponto ele se localiza na sequência de eventos e quais são as suas referências e paralelos com outros textos das Escrituras.
O texto de João 10:10 foi, estrategicamente colocado pelo evangelista entre dois grandes eventos: o primeiro é a narrativa da cura de um cego de nascença e o segundo registra a declaração pública de Jesus acerca de Seu ministério terreno e filiação divina.
Ambos possuem uma clara e evidente conexão que, infelizmente, tem sido ignorada em virtude da austera advertência que eles nos apresentam. Jamais vamos compreender, corretamente, o peso que Jesus coloca sobre os ombros do ladrão se não compreendemos a construção dos eventos apresentados pelo evangelista João.
Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego? — João 9:2
Jesus e seus discípulos, enquanto caminhavam, se deparam com um cego de nascença. Intrigados com aquela situação os discípulos então questionam se aquela deficiência seria resultado do pecado do próprio cego ou de seus pais.
Embora, num primeiro momento, possa parecer um questionamento sem relevância tal declaração expressa a compreensão religiosa sobre a realidade.
A pobreza e a deficiência, segundo o entendimento comum da época, era a evidência da maldição de Deus ou fruto do pecado.
Embora o próprio Deus tenha afirmado, na Lei, que “Os pais não morrerão pelos filhos, nem os filhos pelos pais; cada um morrerá pelo seu pecado” (Deuteronômio 24:16), a ideia de “maldição hereditária” era bastante difundida na sociedade judaica e, ainda hoje, vemos vestígios dessa compreensão errônea dentro das Igrejas cristãs.
Em contrapartida, a riqueza e prosperidade material seria um claro demonstrativo da bênção e do favor divino. Isso nos ajuda a compreender com mais clareza o desespero dos discípulos ao ouvirem do Senhor que seria mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, do que um rico entrar no Reino dos Céus (Marcos 10:25).
Os próprios fariseus, ao interrogar o cego, que agora via, declaram com aspereza e arrogância, aquilo que se pensava no meio religioso acerca dos deficientes e pobres: “Tu és nascido todo em pecados, e nos ensinas a nós?” (João 9:34).
Tal realidade criava um muro intransponível de separação entre aqueles que eram abençoados e aqueles que eram amaldiçoados. Como um cego poderia desfrutar do favor divino se era nascido totalmente em pecado?
Enxergamos neste texto a falência do sistema religioso judaico e o desvio que os fariseus haviam tomado. Eram incapazes de olhar para a realidade do milagre, pois estavam cegos com o dogmas e preceitos humanos.
“Então alguns dos fariseus diziam: Este homem não é de Deus, pois não guarda o sábado” (João 9:16)
Questionavam a veracidade do testemunho do cego, pois não eram capazes de aceitar o fato de Cristo ter curado um homem no sábado.
Para a cúpula religiosa, o Ungido de Deus só poderia ser aceito se estivesse submetido ao conjunto de regras, preceitos e dogmas humanos. Mas Cristo, sendo Deus encarnado, não pode ser contido por cadeias religiosas, não se submete aos nossos caprichos.
Não muito diferente dos dias de Cristo, não é raro encontrarmos, em nossos dias, o mesmo cenário. Quantas vezes líderes e instituições que deveriam representar o evangelho se empenham em reduzir o poder, a glória e a majestade do Senhor?
Estes homens são, na descrição feita por Jesus em Mateus 23, condutores cegos, eles colocam fardos pesados sobre os ombros dos outros, mas não os auxiliam, nutrem uma vida de aparências enquanto seu interior está podre e longe do Senhor, não se salvam e impedem que outros alcancem a salvação, convertem homens e mulheres à conjuntos de dogmas, mas não os converte ao Deus vivo.
Embora, muitas vezes não observado, o versículo 41 de João 9 apresenta um interlúdio entre a cura de Cristo e Seu ensino exortativo presente no capítulo 10. Contudo, encontramos, neste verso, o ponto chave para a compreensão da figura do Bom Pastor e do ladrão.
“Disse-lhes Jesus: Se fôsseis cegos, não teríeis pecado; mas como agora dizeis: Vemos; por isso o vosso pecado permanece” — João 9:41
Jesus declara que os fariseus pecavam não por serem cegos espiritualmente, mas sim por não reconhecerem seu estado de cegueira. Não compreendiam e nem cumpriam a Lei de Deus, mas acreditavam que possuíam a capacidade de conduzir outros à obediência ao Senhor.
Sequer tinham condições de guiarem a si mesmos, mas tentavam guiar o povo.
O compromisso da liderança religiosa de Israel, na verdade, não era em obedecer e seguir a Lei de Deus, mas sim promover e manter as próprias vontades. Criaram um projeto de poder, se assentavam sobre ritos e preceitos preconceituosos e pecaminosos.
Quando o poder e a autoridade era questionada, partiam para e exclusão do transgressor. Não foram capazes de ocultar a grandiosidade do milagre de Cristo então se apressaram em expulsar o cego da sinagoga.
Removeram aquele homem da vida religiosa, usurparam dele o direito de participar da comunidade, retiraram sua identidade e o proibiram de receber as instruções da lei do Senhor. Tudo isso por orgulho, arrogância e desespero para manter de pé o projeto de poder e domínio.
Quem é o ladrão de João 10:10?
Ao se apresentar como a porta das ovelhas o Senhor Jesus estabelece o ponto de partida para a identificação do ladrão, “aquele que não entra pela porta no curral das ovelhas, mas sobe por outra parte, é ladrão e salteador” (v. 1).
Ainda no capítulo 10 Jesus confronta os judeus que colocavam em dúvida a veracidade de Seu ministério terreno e filiação divina (v. 24). Diante da incredulidade de seus corações o Senhor declara abertamente: “Mas vós não credes porque não sois das minhas ovelhas, como já vo-lo tenho dito” (v. 26).
Reverberando a parábola que já havia lhes ensinado, Jesus deixa claro que eles não faziam parte das ovelhas de seu rebanho (v. 27), pois não passaram pela porta e não se submeteram aos Seus ensinamentos. Embora os fariseus afirmassem serem filhos de Deus (João 8:41) suas ações apontavam para o extremo oposto o que revelava, na verdade, um padrão de vida contrário à vontade do Senhor.
Ao utilizar a imagem do pastor de ovelhas Jesus recorre ao que outros profetas já haviam anunciado séculos antes e que, sábado após sábado, era lido nas sinagogas: o fracasso dos líderes de Israel em apascentar as ovelhas de Deus.
“Assim diz o Senhor DEUS: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Não devem os pastores apascentar as ovelhas? Comeis a gordura, e vos vestis da lã; matais o cevado; mas não apascentais as ovelhas” —Ezequiel 34:2,3
Os líderes religiosos de Israel, cujo dever era zelar e cuidar do rebanho de Deus, afastaram de seu chamado e passaram a usurpar a lã e a gordura das ovelhas. Apascentavam a si mesmos, comiam às custas do rebanho de Deus e, sem nenhum temor, expulsavam as ovelhas do aprisco.
“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que devorais as casas das viúvas, sob pretexto de prolongadas orações; por isso sofrereis mais rigoroso juízo. Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas! pois que percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o fazeis filho do inferno duas vezes mais do que vós” — Mateus 23:14,15
Todo o contexto de João 10 se articula entorno dessa realidade. Aqueles que deveriam zelar pela vida espiritual do povo, havia acabado de expulsar da sinagoga o homem que havia sido cego. Proclamavam a lei de Deus, sábado após sábado, mas não eram capazes de reconhecer o Verbo encarnado.
Tal cenário não é muito diferente daquele que encontramos em muitas igrejas de nosso tempo. Não precisamos ir muito longe para encontrar falsos pastores, líderes corruptos, profetas gananciosos, homens e mulheres que torcer o evangelho de Jesus para satisfazer interesses pessoais, para engordar sua ganância por dinheiro e saciar a sede por poder e dominação.
São esses homens que Jesus chama de ladrão em sua parábola. Os pastores que não apascentam as ovelhas, mas estão interessados no lucro, e não o diabo, é o ladrão de João 10:10.
As mesmas características apresentadas pelo profeta Ezequiel também são relembradas pelo Apóstolo Pedro em sua segunda carta, capítulo 2 versículos 1 ao 3:
“E também houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá também falsos doutores, que introduzirão encobertamente heresias de perdição, e negarão o Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina perdição. E muitos seguirão as suas dissoluções, pelos quais será blasfemado o caminho da verdade. E por avareza farão de vós negócio com palavras fingidas; sobre os quais já de largo tempo não será tardia a sentença, e a sua perdição não dormita.”
O mesmo declara Judas (v. 16): “Estes são murmuradores, queixosos da sua sorte, andando segundo as suas concupiscências, e cuja boca diz coisas mui arrogantes, admirando as pessoas por causa do interesse.”
Qual o problema de lermos diabo no lugar do ladrão?
Você pode questionar qual seria o problema de interpretarmos o ladrão como sendo uma referência espiritual do diabo. Afinal, tal como o ladrão da parábola, o diabo também opera com o propósito de matar, roubar e destruir.
O grande problema, em primeiro lugar, é que a parábola de Cristo não é direcionado à figura de Satanás, mas sim aos falsos mestres e aos fariseus que roubavam, destruíam e matavam o rebanho de Deus.
E, em segundo lugar, impor ao texto uma leitura enviesada simplesmente para sustentar uma perspectiva teológica e/ou ideológica vai na contramão de uma interpretação bíblica saudável.
Interpretar as escrituras desrespeitando o contexto nos coloca em uma situação delicada, pois se aqui eu estabeleço um critério e ali outro, como então vamos definir qual é a linha de interpretação saudável e bíblica?
E não apenas isso, mas a minha leitura, meditação e aplicação da Palavra de Deus se torna comprometida, pois uma vez que se impõe ao texto aquilo que desejamos que ele nos diga então, inevitavelmente, estaremos moldado as escrituras à nossa vida e não o contrário.
O ensino de Jesus registrado em João 10:10 está centrado no combate aos falsos mestres e, ao transferir a responsabilidade para o diabo, os falsos profetas de nosso tempo criam um álibi que os poupa das consequências de seus pecados cometidos contra o rebanho de Deus.
Entretanto, não há alívio para suas más obras, o próprio Senhor já selou seu destino e a sua justiça não tardará.
“Assim diz o Senhor DEUS: Eis que eu estou contra os pastores; das suas mãos demandarei as minhas ovelhas, e eles deixarão de apascentar as ovelhas; os pastores não se apascentarão mais a si mesmos; e livrarei as minhas ovelhas da sua boca, e não lhes servirão mais de pasto” — Ezequiel 34:10
Que Deus lhe abençoe.